Eliana de Melo Barison
No Mito da Caverna, Platão nos fala de homens que, acorrentados no fundo de uma caverna, só viam as sombras projetadas pela luz de uma fogueira situada numa parte mais alta e ouviam apenas ecos dos ruídos.
Como não podiam ver ou ouvir outras coisas, acreditavam que aquilo era toda a realidade. Entre eles, eram considerados sábios aqueles que conseguiam prever imagens e sons futuros a partir dos presentes.
Um dia, um deles consegue se desprender e começa a subir a caverna. Descobre então as coisas que produziam as sombras e os ecos e reconhece que o que julgava ser a realidade era apenas sombra das coisas.
Continua subindo e chega ao mundo exterior onde, no primeiro momento, fica ofuscado pela luz do sol e não consegue ver nada. À medida que seus olhos se acostumam, passa a ver primeiro o reflexo das coisas na água, pois ainda não consegue olhar para elas e só depois pode ver as próprias coisas sob a luz do sol.
Platão apresenta esse mito para falar dos modos de conhecimento. As percepções no interior da caverna correspondem ao conhecimento que adquirimos por meio dos órgãos dos sentidos, ao mundo sensível – tudo que conhecemos por ver, ouvir, palpar, cheirar, provar. Esse conhecimento é chamado empírico ou por imagens: imaginação. Nesse sentido, imaginação não é imaginar coisas que não existem. Fala-se em imaginação porque as coisas produzem em nós, ao agir sobre nossos sentidos, idéias que são dadas no tempo e no espaço. Chamamos imagens essas idéias espaciais que temos das coisas pelos sentidos.
Se as coisas no interior da caverna são imagens, as sombras no fundo da caverna são imagens das imagens, o que Platão chama de simulacros. São imagens de imagens toda representação de percepções que temos pelos sentidos: sombras, pinturas, esculturas, filmes, sonhos, etc...
Simulacros podem nos enganar, fazendo-nos confundi-los com a própria imagem das coisas, por exemplo, quando sonhamos. Mas a imagem mais viva da percepção quando acordamos nos faz perceber o engano. É o que acontece com o homem que se desprendeu do fundo da caverna e, ainda dentro dela, percebe que as sombras projetadas são imagens das coisas que passam na frente da fogueira.
As percepções no mundo exterior, à luz do sol, correspondem ao mundo inteligível, isto é, ao conhecimento produzido pelo intelecto, à luz da razão. Platão divide em dois os modos de conhecimento pelo intelecto: entendimento ou raciocínio (dedutivo ou discursivo) e intelecção (ação de conceber pelo intelecto).
Pelo raciocínio, apreende-se noções gerais que são relações entre as coisas. É o modo de conhecimento das ciências, que captam pelo intelecto os princípios, postulados e axiomas e, a partir deles, deduzem o corpo do conhecimento científico.
Podemos conhecer ciências usando apenas os sentidos e a memória, ou seja, apenas o conhecimento por imagem. Isso acontece quando lemos livros ou assistimos aulas de ciências. Esse conhecimento assim adquirido é passivo, não há atividade da mente de produzi-lo. A mente sofre ação do exterior através dos órgãos dos sentidos. Mas esse conhecimento passivo, por imagens, não é operativo, não funciona para resolver problemas.
Temos experiência disso quando, após assistir à aula e estudar uma matéria de matemática ou física, pensamos que sabemos o assunto; mas não conseguimos resolver um exercício que exige aplicação desse conhecimento. Só vamos conseguir resolver o exercício quando entendemos (isto é, quando usamos a mente ativa, o entendimento) a matéria.
Um parêntesis: muito do nosso sistema de ensino se baseia no conhecimento por imagens; e a avaliação do aprendizado, as provas, testa quase que somente a memória do estudante. Esse não é estimulado a desenvolver sua atividade mental e, portanto, sua capacidade de aplicar seus conhecimentos frente aos problemas que a realidade apresente. Mesmo na Universidade, onde se esperaria que a atividade mental para produção de conhecimentos fosse mais desenvolvida, ainda se recai freqüentemente na aprendizagem passiva. Muitos alunos do curso médico, creio que a maioria, se formam sem ser capazes de aplicar seus conhecimentos num raciocínio clínico ou na avaliação de um problema de saúde pública. Fim do parêntesis.
O último modo de conhecimento, a intelecção, é pura concepção da realidade pelo intelecto. Essa produção intelectual não é discursiva, isto é, não usa a linguagem, nem trabalha com imagens. É a compreensão de uma certa realidade em seus múltiplos aspectos simultaneamente. Esse movimento do intelecto só é possível após muito trabalho mental pelo raciocínio.
Não é possível transferir passivamente a alguém o movimento de raciocinar e de inteligir. Tudo que o professor pode fazer é dar ao aluno condições (indicar leituras e exercícios, apresentar raciocínios e [1] intelectual da realidade. Platão diz que não se trata de introduzir ciência na alma que não a possui, mas de voltar para a luz o órgão inato da alma para o aprendizado, a faculdade de pensar.
reflexões) para que esse dê o salto de pensamento para a intuição
reflexões) para que esse dê o salto de pensamento para a intuição
Tudo isso aparece no Matrix?
Sim, porque o filme é uma versão moderna, ou melhor, futurista do Mito da Caverna. Ambos são alegorias.[2]
Os objetos no interior da caverna correspondem, no filme, à realidade virtual, que são imagens fornecidas à mente passiva dos homens adormecidos, dos quais é subtraída energia para as máquinas.
O despertar (a saída da caverna) representa a passagem da passividade à atividade mental. Afinal, estamos frente a um filme de ação em que toda atividade física representa atividade mental que, fraca de início, vai crescendo à medida que se exercita (ou se exerce). Esse movimento da mente depende da curiosidade, da busca de algo para além do dado imediato da realidade empírica. No filme, a curiosidade é representada por “seguir o coelho branco”, em referência à Alice no País das Maravilhas.
Ao despertar, Neo, como o homem da caverna ofuscado pela luz, tem dificuldade em enxergar, reclama que os olhos doem (curiosamente, no filme, ao contrário do mito de Platão, a realidade virtual é clara e colorida – embora meio esverdeada – e o real escuro e cinzento).
Após tratamento inicial para permitir que seus sentidos e músculos, antes inativos, passem a funcionar, a mente de Neo é carregada com grande número de programas, ou seja, de informações. O operador fica impressionado com a capacidade de Neo de reter informações: trata-se de uma memória privilegiada. Mesmo assim, a reação de Neo no início desse processo é de dor. Mas, pela sua expressão quando responde ao operador se quer mais – quero! – percebemos que o processo é também prazeroso e que a mente de Neo é ávida por informações.
Entretanto, esse processo é ainda um aprendizado passivo e o conhecimento assim adquirido não funciona. Neo pensa que sabe lutar, mas Morfeu vai lhe mostrar que não, que sem ação mental seu conhecimento sobre luta não é efetivo, não funciona na prática. Ele observa que é diferente conhecer o caminho e trilhar esse caminho. É preciso, portanto, um exercício inicial numa realidade virtual para treino. Dar o primeiro salto não é fácil e ninguém consegue na primeira tentativa.
Mais de uma vez, Morfeu diz a Neo que ele pode conduzi-lo até a porta, mas que cabe a Neo atravessá-la. No processo de aprendizado, o aluno pode ser conduzido pela apresentação de informações, raciocínios e exercícios, mas ninguém pode produzir entendimento no outro. A atividade mental depende do esforço da própria mente.
Vencida a dificuldade inicial, cada salto, cada nova conquista, aumenta a capacidade de agir de modo cada vez mais eficaz. A produção ativa de conhecimentos torna o intelecto cada vez mais forte para conceber novas idéias.
O último modo de conhecimento corresponde, no filme, a conhecer o código do real, isto é, perceber simultaneamente o conjunto de comandos do programa que produzem a realidade empírica. Os companheiros de Neo conseguem, quando fora da Matrix, ler o código e saber pela leitura o que nela se passa. Também o conhecimento que têm permite que consigam agir com mais competência quando submetidos às regras da Matrix, quando entram no sistema. Mas eles não são capazes, estando dentro da Matrix, de ler o código e dependem de ser instruídos por alguém de fora.
Quando compreende sua realidade anterior, diz Platão, o liberto sente-se feliz com a mudança e deplora a situação dos demais. Para libertar os outros homens, é preciso voltar à caverna, ou à realidade virtual, pois é a única forma de estabelecer relações com eles. Como quando se volta da luz para a escuridão, quem já esteve fora tem dificuldade de ver no escuro, não se adapta bem à condição anterior e é hostilizado e ridicularizado por seus antigos companheiros. Esses não entendem o que o liberto quer dizer e podem até considerá-lo perigoso e tentar eliminá-lo: transformam-se em “agentes” de defesa do sistema.
É mais fácil, ou menos difícil, compreender a realidade quando estamos de fora, quando não estamos submetidos às imagens e envolvidos pelas emoções que elas geram. Compreender a realidade, ler o código que a compõe, percebendo o processo que a produz, estando sujeito às sensações empíricas, não é para qualquer um. Na cena final, Neo, depois de todo o trabalho de fortalecimento da mente por que passou, consegue finalmente ler o código estando no interior da realidade virtual. Com isso, consegue transformar o real, ou seja, agir sobre o programa, sobre o processo de produção do real e modificá-lo.
[1] O sentido de intuição, aqui, é completamente diferente do que habitualmente chamamos intuição, que é uma mera impressão baseada em imagens.
Significados modernos: 1) aproximação de dois fatos espirituais, conceito e imagem, entre ao quais estabeleceria correlação convencional e arbitrária. 2) simbolismo concreto, percorrendo todo o conjunto de uma obra, de modo que todos os elementos do simbolizante correspondem, sistematicamente, um a um, aos elementos do simbolizado. 3) obra composta segundo esse procedimento.